domingo, 8 de novembro de 2020

Meu cemitério de navio

 

Há alguns dias abandonei navio

Pulei em água fria, minhas juntas petrificaram-se em gelo

Achei que estava fugindo dos problemas

Que a tripulação era o que eu ia deixar pra trás

Mas na água me rondavam as almas dos meus mortos

Olhavam pra mim com os mesmos olhos de quando morreram

O medo da escuridão abaixo d'água e a companhia fúnebre

Só me senti mais sozinho, mais frio, mais derrotado

Meu corpo foi até o fundo, onde pensei que fugiria

Matei tudo, matei todos, morri comigo mesmo

Acenderia um cigarro nas profundezas do meu medo?

É apenas o que faço, espero as almas se assentarem

Mas sempre correm a minha volta com medo e agitadas

Há alguns dias abandonei navio

E enterrei ele comigo mesmo

Em meio ao oceano

Cavei minha cova e morri com meus medos

Porque tive medo de enfrenta-los

Então os afoguei, junto do meu corpo

Onde todos morremos de olhos fechados

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Parto de alma

A figura paterna, tão dentro de mim 
Não fui pai, mas criei filhos
Não fui mãe, mas conflitos e ideias cresceram 
No meu ventre? Se não tenho um, onde guardo isso?
Onde cresci os medos, onde criei minhas questões?
Para onde foram meus nutrientes e de qual maneira eu poderia dar de mamar?

Minha alma é gestante e minha mente vagueia pelo campo
Procura quem precisa de ajuda, se doa como se acolhe um filho
Mas a mulher grávida anda de pés descalços na lama
Veste trapos e não sabe pra onde vai 
Apenas vagando, pouco lúcida, duvidosa de suas necessidades

Um seio coberto pelo tecido sujo e amarrotado
Outro pendendo para fora, a glândula mamária protusa,
mordida e de feridas com sangue seco 
O leite provavelmente acabou, não há mais suco, nem cura
Onde estão meus filhos? Ouço o choro
Vejo seus corpos pequenos em meio ao desastre
 
Minha alma de mamas afetadas deita sobre a grama
Não é só onde forneço que dói, todo o resto também grita por ajuda
Onde está minha mãe? Onde está meu pai?
Pensei que a história pudesse começar por mim
Mas pareço o ponto zero
Começo, meio e fim, tudo junto no pequeno bico do peito 

A língua da mulher como lixa passeia pela boca em atrito
Sua secura alerta a desidratação que percorre todo seu corpo 
Ela deita sobre a terra e espera, sem muitas esperanças 
que a terra lhe dê o que for preciso 
Espera que o solo fofo tenha nutrientes o suficiente 
Na umidade escura ela fecha os olhos e espera
E apenas isso

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Frio


Quase palpável, essa massa densa se esgueira pelas minhas entranhas e muda tudo de lugar, empurra meu coração para o lado, os pulmões para frente, o estômago para baixo. Ela não tem o objetivo disso, não se move por caminhos planejados, apenas vaga sem rumo. Dentro de mim, me comendo de dentro para fora, me rouba o ar e me anula as palavras. Essa massa caga o silêncio pela minha boca e mija as lágrimas pelos meus olhos. Meu parasita. Morador que não seria tão violento e perigoso se eu soubesse com mais frequência que somos separados e singulares. Os dias passam e o vejo como eu, me vejo como ele. Mórbido, quieto, pesado, lento, triste. Me roubou quem eu era.  Dedos rápidos, melodia em palavras, pensamentos elaborados e amor ao espelho. Quem eu era mesmo? Às vezes tenho relances de memórias que me esquentam um pouco por dentro, o parasita se retorce um pouco porque não gosta do calor, ele quer o frio. Quando fazia gambiarra para deitar no chão e ver, do pequenino monitor, episódios de naruto que eu logo comentaria com meus amigos no dia seguinte. Quando voltava da escola e chovia. Quando saía com meus amigos e todos estavam ali, entre si, e em mais nenhum outro lugar. O verme se contorce um pouco, peregrina entre alguns órgãos e logo se acomoda novamente. Logo esfrio por dentro e logo me situo. Frio. Há também os relances de um futuro, desses o calor era ainda maior, mas nem esquentam mais. Amar, viajar, me libertar, ganhar, criar. Eram como uma fogueira constante à qual eu sempre procuraria abrigo e calor. Depois de longos dias difíceis era ao lado dela que eu aqueceria minhas mãos entre baforadas nos palmos aquecidos de suor frio. Mas se apagou. A noite agora não tem luz nem chama. A madeira está molhada e faíscas não vingam mais. Quem eu era mesmo? Eu era quente. Por quê está tão frio? Frio como um cadáver.