domingo, 26 de novembro de 2017

Memórias de outras vidas

Às vezes tenho essas memórias daquelas coisas que nunca de fato aconteceram. Fragmentos de tempo e espaço que me dão sensações únicas. Conforto. Um sentimento de ternura pelo qual nunca fui testemunha em 21 anos de idade.


  Luzes de natal colorem de forma instável os rostos sorridentes em volta da mesa de centro. Azul, verde, vermelho e amarelo invadem suas bocas escancaradas pelo riso e são engolidos ao fim do fôlego. Alguém contou uma piada mas não estou prestando atenção, estou preocupado em analisar aqueles olhos castanhos, a linha que se forma entre seus olhos durante suas gargalhadas, sua voz esganiçada. Abraço-o e me sinto seguro, ele me abraça de volta e me beija no pescoço. "Está tudo bem?" Me pergunta pelos olhos abertos e boca fechada. Sorrio em resposta, é minha maneira de dizer que estou bem. E a noite vai embora, com suas luzes, suas conversas de natal e seus amigos que brincam.

50/50

Sonhei. Quando acordei, procurei o significado e era afeto. Falta dele. Tenho. Preciso? Quero. Deveria? Sinto. E aí a dor no peito, um sopro frio dentro do corpo oco. E se meu corpo é vazio, minha alma é cheia, transbordando. Sou ímpar, de extremos. Ambíguo. Composto de opostos. Preocupado demais com o que pensam e nervoso demais com o que fazer, com o que dizer. À quem dizer, como, quando e por quê. Atento aos gestos, sou ansioso por abrigo e temeroso da solidão. Como posso amar tanto a companhia da minha sombra dançante pelas luzes de natal e chorar pela ida deles? Procuro a resposta nas nuvens, nos momentos de meditação, nas descobertas musicais e nas histórias que me tocam.  Procuro respostas.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

A história de alguém vivo

  Seus olhos ainda estavam fechados quando despertou. Ouviu o vento uivar janela adentro e então os pelos do braço arrepiaram. Cobriu-se e encolheu-se como um pequeno animalzinho friorento em busca de calor. O vento continuava a roubar-lhe conforto. Ele uivava, rodava pelo quarto e cercava-o como um predador faminto. Cada brecha do cobertor permitia uma entrada violenta do frio em forma de ar que insistia em incomodá-lo.
  Abriu os olhos. E vieram. Todas as memórias. As conversas, os medos, os anseios, os erros. Tudo lhe invadiu a mente como um veneno que logo foi se espalhando pelo corpo. O frio ficou mais intenso. Observou as cortinas dançarem com euforia enquanto apertava mais a coberta contra si. Puxou todo o ar possível para os pulmões e falhou em tosses ruidosas. Cigarro, pensou. Fechou os olhos de novo. Viu seus pensamentos banhados pela escuridão. Tantas coisas... Tanto tempo...
   Sentado na cama, deixou a coberta escorrer pelo seu corpo nu e cair no chão aos seus pés. Olhou para eles e mexeu os dedos preguiçosamente. Juntou as mãos acima da cabeça e se esticou com toda a força que poderia recolher naquela manhã cansada de domingo, ouviu um estalo nas costas e se contentou. Foi até a janela contra o vento que já não despertava muita coisa no seu corpo dormente. Apoiou-se com os cotovelos no parapeito e observou a rua deserta que terminava na banca da esquina, com o seu José sentado num banquinho branco a fumar seus cigarros. Levou o olhar para os prédios, depois para cima deles. O céu estava branco, aquele branco frio e aconchegante que sempre lhe agradou.
  Cresceu ouvindo que o frio era ruim. Que a chuva estragava os planos e que as nuvens traziam dor, tristeza, angústia. Nunca fora assim com ele. Amava os tempos nublados. Sentar ao lado da janela com um café e olhar a chuva escorrer pelo vidro. Ver um filme embaixo das cobertas. Beijar alguém sob o céu nublado lhe preenchia o peito de tal maneira que sol nenhum prestaria-se ao feito.
  Mas o céu branco não lhe despertou muita coisa hoje. Minha cabeça está cheia, repetiu seu mantra. E realmente estava. Cheia daquelas pessoas, daqueles compromissos, daqueles padrões a seguir, daqueles sentimentos a domar. Sua cabeça estava cheia desde que abriu os olhos, estalou os dedos, levantou e viu que estava vivo. Queria cortar a correnteza que inundava sua alma e cansava seu espírito. Queria esvaziar de toda aquela água. Mas já estava acordado. Já estava vivo.
  Fechou a janela do vento mas não se atreveu a fechar as cortinas. O calor súbito já era o suficiente e não queria ficar na escuridão. E então fechou os olhos, encostou a testa no vidro gelado da janela e respirou fundo, dessa vez com os pulmões cooperando. Analisou tudo. Todas aquelas coisas que lhe preenchiam. Nem mesmo se preocupou em colocá-las em ordem. Apenas as observou.
  Voltou para a cama e deitou sobre os lençóis desarrumados. Cheio. Quente. Aquecido.
  Vivo.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Dor

Estive doente, de novo. Fui ferido lá dentro por algo que não vi chegar e nem ir, a bem da verdade, eu não vi. É invisível, é sorrateiro, é sutil. Comecei a sangrar uma hemorragia interna. Dores se espalhando pelo espírito, como tratar? Por experiência própria, sei que precisava tirar o veneno.
Precisava expor o sangue contaminado, dar fim ao tumor que se espalhava.

Mas não saía
De jeito nenhum, não saía.

Então antes que conseguisse me curar ao sangrar em lágrimas, deixei de lado. Aceitei, deixei a dor lá dentro, lugar que ela mesma chamou de casa por anos.E algum tempo passou, tempo de percepções deturpadas. Por algum motivo, foi-se, mas sei que não chorei

Talvez só tenha se assentado.
Talvez tenha sido curado.

Mas eu sei que não é nada disso. Nunca foi. Sou que nem água, mole, simples, facilmente corrompido. E não peno por isso, porque água também é forte. Água é clara, leve, constante produto de mudanças.

A dor sempre insistiu em me pedir casa. Hóspede fiel por anos, tive que quebrar o hábito. Não sou rio dessas dores.

Então, dor, me desculpe, mas não te oferecerei mais abrigo. Entenda que não deixarei de ser teu amigo, nunca esquecerei a necessidade que há em te conhecer, te aceitar e te entender. Então vamos manter contato, me mande cartas!

Só não posso te deixar ficar por muito tempo, não mais. Até te faço um café, sentamos na varanda e cometemos o erro cruel de olhar para o passado. Mas não fique. Saiba sua hora de ir pois uma hora o café vai esfriar e as memórias vão azedar nas pontas de nossas línguas. Saiba me dizer adeus porque afinal de contas você não faz parte de mim.
E de mim muitas coisas já fazem.