segunda-feira, 6 de abril de 2020

Frio


Quase palpável, essa massa densa se esgueira pelas minhas entranhas e muda tudo de lugar, empurra meu coração para o lado, os pulmões para frente, o estômago para baixo. Ela não tem o objetivo disso, não se move por caminhos planejados, apenas vaga sem rumo. Dentro de mim, me comendo de dentro para fora, me rouba o ar e me anula as palavras. Essa massa caga o silêncio pela minha boca e mija as lágrimas pelos meus olhos. Meu parasita. Morador que não seria tão violento e perigoso se eu soubesse com mais frequência que somos separados e singulares. Os dias passam e o vejo como eu, me vejo como ele. Mórbido, quieto, pesado, lento, triste. Me roubou quem eu era.  Dedos rápidos, melodia em palavras, pensamentos elaborados e amor ao espelho. Quem eu era mesmo? Às vezes tenho relances de memórias que me esquentam um pouco por dentro, o parasita se retorce um pouco porque não gosta do calor, ele quer o frio. Quando fazia gambiarra para deitar no chão e ver, do pequenino monitor, episódios de naruto que eu logo comentaria com meus amigos no dia seguinte. Quando voltava da escola e chovia. Quando saía com meus amigos e todos estavam ali, entre si, e em mais nenhum outro lugar. O verme se contorce um pouco, peregrina entre alguns órgãos e logo se acomoda novamente. Logo esfrio por dentro e logo me situo. Frio. Há também os relances de um futuro, desses o calor era ainda maior, mas nem esquentam mais. Amar, viajar, me libertar, ganhar, criar. Eram como uma fogueira constante à qual eu sempre procuraria abrigo e calor. Depois de longos dias difíceis era ao lado dela que eu aqueceria minhas mãos entre baforadas nos palmos aquecidos de suor frio. Mas se apagou. A noite agora não tem luz nem chama. A madeira está molhada e faíscas não vingam mais. Quem eu era mesmo? Eu era quente. Por quê está tão frio? Frio como um cadáver.