sexta-feira, 14 de setembro de 2018

uma narração de um dia e meio da vida

Memórias são um conceito falho. O tempo passa e até mesmo a melhor das mentes não vai retratar com precisão perfeita o que aconteceu, porque aquilo está perdido. É inocente da nossa parte pensar que não. Mas preciso relatar algumas coisas, mesmo que minhas memórias, mesmo as de ontem, já falhem em ordem, intensidade e talvez até mesmo veracidade. Mas contarei tudo no agora, pois não há nenhum outro momento de escrever. Quando se escreve é como quando se respira, só o fazemos agora, nem antes e nem depois. E é nessa importância do agora que irei me dispor à contar, porque mesmo que em frangalhos, memórias são contadas no presente, que as altera, as manipula. E o presente deve saber de algo importante para fazer desse jeito. Pois bem, o darei as honras.

Hoje: aproximadamente 16:00, 14 de setembro de 2018

Fecho a porta do meu quarto, o coração acelerado, sento na cadeira em frente ao computador e recuo um pouco para ter espaço ao trabalhar nesse nó apertado da sacola. Não demoro muito pra abrir, o sentimento é de ansiar por um tesouro. Quando consigo abrir, mosquitos brotam de dentro. Alguns passam pela minha mão com suas patinhas em uma velocidade anormal, como se estivessem saindo de um cativeiro e tivessem acabado de ser liberados após anos. Eles se comportam como animais que nem lembravam muito como voar, mas logo recuperam a memória e se espalham rapidamente a minha volta.

Ontem: 13 de setembro de 2018

Como regra, foi um dia longo da minha rotina semanal. Acordei cinco horas da manhã, fumei o resto de um paiol que havia do lado da cama, adiei o alarme alguns minutos até ser inevitável levantar-me sem me atrasar. Me atrasar voluntariamente, porque o trânsito foi incerto como sempre. Fiz a viagem em pé, cheguei n faculdade, lutei contra o sono, contra a fome e contra as minhas suspeitas. Consuelo estava estressada, Fernanda estava estressada. Quando os outros chegam, elas conversam mais do que comigo, quando os outros saem, o silêncio é uma porta que eu escolho deixar aberta ou fechada. E somente eu. Decidi que após a faculdade não iria para a academia. Ia voltar para casa e descansar as uma hora e meia que eu teria direito antes de ter que me arrumar e voltar para a cidade de novo, para a realidade. As vezes faço essa quebra na rotina porque hoje eu me dou conta de como estar deitado na minha cama, mesmo que alguns minutos, pode ser valioso. Antes de ir pra casa, comprei um cigarro, fumei-o, mas não vou listar as vezes que fumei com precisão, não só porque não lembro mas também porque seria irrelevante, apenas fumei. A mesma fumaça engolida com prazer e/ou culpa de sempre. Voltei para o trabalho, dei minha aula e me leram cartas. Renan lê essas cartas de Tarô. Perguntei em silêncio obviamente pelo assunto que mais me acompanha, dia e noite, hora após hora, inspiração após expiração. Quando irei parar de fumar?
Carta 1:influência do passado: algo ligado a sentimentos, instintividade em detrimento da razão.
Carta 2: influência do presente: revelar demais, de repente pra pessoas demais o que deveria ficar mais oculto. O sol ilumina mas também pode cegar.
Carta 3: Conselho: atitude, princípio de ação por minha parte
Carta 4: Resultado caso o conselho seja seguido: princípio de sucesso ou início de prosperidade.

Era isso: Eu precisava de atitude. Obviamente, como um fumante de mais de ano, não foi a primeira nem a vigésima vez que eu teria tido consciência da validez da minha atitude. Mas as cartas disseram, não eu, e por algum motivo isso teve mais valia. Eu sei que eu posso. Eu vi: É hoje, o grande dia. A mudança. Eu vou conseguir chegar no princípio de sucesso, eu vou conseguir.

Depois do trabalho, fui para a academia, não havia problema em chegar mais tarde em casa pois no dia seguinte eu não precisaria acordar tão cedo. O treino lá foi surpreendentemente bom, fiz tudo com calma e de atenção plena. Foi bom, produtivo e interessante. Quando saí, fumei a metade do cigarro que estava na minha mochila, sabendo que aquele seria o último, olhei para o céu azul escuro e me encantei com a lua crescente, que parecia sorrir pra mim.

Hoje: aproximadamente 8:00, 14 de setembro de 2018

Acordei de uma sequência incrivelmente longa de sonhos, a maioria de sonhos bons, pequenas cidadezinhas com céus estrelados. Fumei o resto do último paiol e joguei a ponta intragável no lixo. Era hoje, o dia de mudanças. Depois de limpar todo meu quarto, varrer toda aquela cinza espalhada e limpar os móveis daquelas pontas de cigarro, guardei as roupas, enchi as garrafas d'água e deixei tudo nos seus devidos lugares.Quando finalmente acabei, pensei: Dessa vez não vou me prometer nem me proibir, isso já me fez muito mal. Vou me permitir a recaída mas também vou me dedicar ao máximo evitá-la.
O dia foi complicado porque além da falta de internet, que já fazia dias, tive que ir e vir na escola aqui do lado umas boas vezes. A falta de organização deles me impediu de estagiar nas turmas que eu devia estagiar, além de me gastar um bom tempo e alguns banhos desnecessários, na sexta feira que vem devo começar a estagiar lá de novo. O dia foi dividido por alguns pensamentos de Gostaria de um cigarro agora. que eram seguidos rapidamente de Estou pensando em como gostaria de ter um cigarro agora. Estou pensando isso. Pensando.  

Hoje: aproximadamente 16:05, 14 de setembro de 2018

Peguei a sacola errada. Disse ao passar pela cozinha com a sacola cheia de bichos fechada novamente. Disse à minha mãe que procurava um papel com número de telefone que havia jogado no lixo. Na varanda, achei o meu saco de lixo, aquele que fechei mais cedo, junto com quase promessas e recomeços. Voltei ao quarto e tranquei a porta, lembrando de todas as vezes que fechei a mesma sem usar a chave mais cedo, porque até agora eu estava no recomeço, estava novo, estava tentando.Abro o saco e aquela ponta de paiol estava ali, logo em cima, olhando para mim. A frustração já tomava conta de mim mas era claramente mesclada e diminuída pela vontade. A vontade, aquela que mata. Peguei da lixeira também o tubo de caneta que usava para fumar essas pontas de paiol. Estou acostumado com essa vergonha solitária, vergonha de mim mesmo, fuçar o lixo por aqueles cigarros que me prometi não fumar novamente.
Coloquei a ponta na caneta e acendi, puxando do outro lado com força. Prazer. Um prazer danificado, desonesto e acompanhado de tudo aquilo que todas as tragadas me proporcionam. Um sentimento quente entrando garganta abaixo enquanto me satisfaz mas ao mesmo tempo me queima, arranha-me por dentro e me deixa logo em seguida com falta de ar, precisando respirar rapidamente para poder inalar ar o suficiente para me manter vivo e consciente. A garganta estranha, o pulmão pequeno e debilitado, o gosto de derrota e inferioridade. Tudo mais uma vez. Outra recaída daquelas depois de um plano daqueles. Logo após a primeira tragada, a vontade já tinha me abandonado, me deixando ali sozinho com o descontentamento e a tristeza, aquela que me acomete tão raramente esses dias mas que nunca me deixou esquecer sua cara.
Planejei repor o plano. Começar de novo. Amarrei a sacola e joguei fora. Disse tão determinadamente na minha cabeça que era quase como se as palavras saíssem da minha boca: Essa foi a última vez.
Mas se eu sei disso? Não. Já me abdiquei da certeza há tempos atrás. E hoje vou dormir com a dúvida e aquela pitada de determinação. Vou dormir talvez com a vontade e acordar com ela. Mas viver com a dúvida. E embora pesquise, estude e pergunte, parece não haver maneira certa ou eficaz. Espero não me cansar e apesar de tudo, continuo acreditando em mim. Então não vou desistir de falhar, mesmo que meu medo seja de que a grande corrente de falhas acabe sendo contraproducente, porque é tudo o que eu posso fazer. Tentar e falhar. E talvez seja tudo o que eu sempre pude. 
 

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