Ontem foi uma coisa. Fui pra reunião, falei com o menino, falei muito. A coisa mesmo aconteceu quando eu soube que não iria ganhar o bônus do trabalho. Eu pensei que ia. Me disseram que ia. Mas não ia que nada, não ganhei! Fiquei de um jeito, que ó, foi uma coisa.
Estava coisado, mas aí menina, que olha só: No final entendi, aceitei, falei "poxa, ok". E hoje aconteceu. Acordei tarde, me espreguicei e decidi que o dia seria bom. Eu estava aceitado, curado, melhor, o ponto de ontem foi uma coisa mas hoje não seria, hoje foi uma coisa.
Estou ouvindo a música que fala "não cante vitória muito cedo, não", Belchior, da playlist que Consuelo fez. Respondo "não cantei vitória não". Engraçado.
Mas então eu acordei, sorri, tomei café, abracei minha mãe e falei com minha irmã Eu só precisava arrumar a casa, esperar Roberto, meu amigo e aluno, chegar, e dar a aula dele. Depois o menino viria. Que dia! Vai ser uma coisa ótima. Minha irmã disse que havia um cara na frente do nosso portão, ele pediu pão, ela negou. Foi me dito para ficar atento, elas ficaram preocupadas e sabiam que o cara estava deitado na nossa calçada. Achei estranho, não tem muita gente transitando por aí. Moro longe de tudo e de todos, mesmo. Não vejo muita gente, uma comunidade pequena. E então eu arrumei a casa, falei com o menino, fiz planos na cabeça e esperei Roberto. Quando Roberto chegou, saí do banho e , olha a coisa aí, descobri que ele tinha sido assaltado. Fiquei impactado ao saber que ele inclusive levou um soco e foi jogado no chão. Pegaram tudo dele, a mochila com tudo, nosso curso, o dinheiro dele, o celular, foi tudo embora, ali naquela mochila. Tudo. E quando aconteceu a coisa, o homem que estava deitado no meu portão correu. Ele correu e deixou os chinelos, uma garrafa d'água e o papelão em que deitava. Devia estar desesperado. E imagina, ele também perdeu muito provavelmente tudo.
Fiquei triste, tentei ao máximo confortar Roberto e tentar acalmá-lo. Mas ele já estava muito calmo, Roberto é assim, racional. O outro problema é que nós vamos falar sobre o curso agora. Acho que não vamos ter mais aulas aqui. E ele mesmo disse isso. Ou seja, acho até que talvez ele não volte a querer ter aula comigo, afinal de contas, ele precisa resolver outras coisas agora, pagar outras coisas agora e talvez não possa mais ter aula comigo agora. Isso é uma coisa: perder mais da metade do que ganho. Como pode isso? Dois dias e eu tinha perdido muito dinheiro, como posso perder dinheiro? Tenho que pagar academia, psicóloga, passagem, meu livro de francês, FANTASMA DA ÓPERA. meu coração até acelera agora e fico nervoso no presente, mas o que relato aqui é o passado. Porque as coisas se misturam?
Roberto foi embora e as dúvidas me ficaram. O menino perguntou o que houve, disse a verdade. A verdade fez ele ter medo, disse que lhe era gatilho e o proibia de uma melhora e o jogava numa recaída, ou piora. Então diante do seu receio, disse que faria um plano louco que teria tido a indecência de ter cogitado mais cedo. Eu sou assim, gosto de sair de casa quando me sinto trancado mesmo que emocionalmente, preciso sentir o vento, ver minha casa do outro lado dos muros. Eu fui À Niterói comprar um cigarro. Uns. Inclusive aquele que o menino fuma. Estava ficando melhor, tanto que quando cheguei em casa, estava certo de que eu estava bem. A aceitação já tinha começado a mexer comigo. É isso. Essa coisa. Um cigarro fumado não foi a transformação esperada mas eu já sei. É um vício ruim, um hábito sim, mas nunca um remédio. Sua pressuposta cura me daria prazer e seu veneno me mataria, mata. Mas voltei pra casa, bem aceitado e respirando fundo.
O menino nem ia mais. Faria mal pra ele, o medo, ele tem medo. Eu fiquei outra coisa né. Mas ele tava passando pela aquela coisa dele, ele não é o culpado, foi a coisa.
Mas enquanto ele pensa nele, na coisa dele, fiquei pensando na minha coisa. E será que ele se afetou tanto quanto me afetou? Não sei. Mas a questão é eu não me afetar, não era? Sei nem mais. E isso quer dizer então que eu estou bem. Escrevo esse texto pra falar das coisas que foram esses dois dias. Muita coisa além disso conseguiu acontecer e eu te falaria isso se a gente estivesse numa conversinha boa agora. Mas é isso, escrever isso foi uma coisa, boa, imagino.
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